Da cor mais quente à sorte de cada dia

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  • Última modificação do post:20 de março de 2022

           Este texto foi escrito por meu filho, Henrique Luz, em 30/08/2018

                   Licenciado em Filosofia pela UFRJ e Mestrando em Filosofia pela PUC-RJ

Era um daqueles dias, em que começava a ser possível sentir o calor do inverno.

Sensação estranha essa, porém me agradava. Por alguma razão, ou melhor, na verdade se tratava mesmo de alguma sensação, considerava o azul do céu de inverno ainda mais belo que um lindo dia ensolarado de verão. Desde sempre ouço dizer que o azul é uma cor fria, mas duvido muito que, seja lá quem tenha sido a primeira pessoa a dizer isso, tenha escutado o que ela tem a dizer, que tenha sentido sua energia serena e aconchegante, sobretudo que tenha a amado em todos os seus tons e formas de expressão.

Me parece muito conveniente para essa tal primeira pessoa, poder dizer tudo o que quisesse sobre o azul, sem que tenha ninguém antes de si mesma para duvidar de sua palavra, e por séculos e séculos sua ideia se reproduzisse de novo e de novo até chegar aos meus ouvidos que o azul é uma cor fria. Ora essa, é capaz que a maldita da pessoa nem estivesse num bom dia, tenha falado de mal humor ou simplesmente falado por falar, como quem diz algo só por não ter de fato o que dizer, pois a interação social é uma coisa misteriosa e às vezes pede por isso, quem sabe ela tenha falado só porque tomou um banho de mar logo pela manhã, ou talvez então tenha falado e se arrependido logo depois, só que quando percebeu as palavras que saíram de sua boca já não eram mais suas, e estavam viajando de boca a boca ao longo da história humana.

O poder das palavras pode facilmente fugir do controle, principalmente para aqueles que se preocupam em controlá-las. Quando as deixam fluir naturalmente, como as águas geladas de um banho de mar logo pela manhã, pode-se ouvir dizer mesmo debaixo d’água que azul é uma cor quente. Assim, o sentido que damos a tudo aquilo que sentimos, cabe a nós lhe atribuir significado.

Para ilustrar tal aforisma, é preciso contar uma história. Houve uma vez, num lindo dia ensolarado de verão, que eu andava apressado pelas ruas da cidade, com uma calma apressada que só quem já está muito acostumado a se atrasar é que a possui e, de repente, um mico salta por cima de minha cabeça. Eu paro. Imobilizado pela surpresa daquela aparição inesperada, mas bem-vinda. Estou numa metrópole com quase doze milhões de habitantes, carros, prédios, asfalto e poluição para dar e vender (ainda que na maioria das vezes a vida urbana se contente apenas em vender), mas de um instante para o outro, meu dia se transforma, um acontecimento me ocorre: eis um mico, saltou por cima de minha cabeça! E, no instante em que vislumbro maravilhado com o que deveria ser, tanto para o mico quanto para mim, apenas um simples salto de uma árvore a outra, minha mente se torna um solo fértil de criatividade, eu colho as palavras como frutos que por sorte caíram logo em minha cabeça, floresce em mim um pensamento: sempre que um mico saltar sobre minha cabeça, significará que aquele será um dia de sorte.

Acredito que eu não precise comentar, mas o farei mesmo assim. De fato, aquele me foi um dia de sorte. Agora, se por acaso espera que eu comente também em que sentido, o porquê, que aquele me foi um dia de sorte, bom continue a esperar, pois não direi. Não quero que aconteça comigo a mesma infelicidade ocorrida com a famigerada primeira pessoa que disse que o azul é uma cor fria. O significado daquela sorte é meu, pois eu o germinei em mim consciente de que era fruto de minha mente, nascido e criado em minha cabeça. O curioso é que, a partir desse dia eu passei a perceber que de vez em quando o mesmo me ocorre, um mico salta por cima de minha cabeça e, desde desse bendito dia, sempre que o valioso acontecimento ocorre, esboço um sábio sorriso no rosto de como quem já sabe o que está por vir, e logo penso: este me será um dia de sorte.

Quando coisas boas me acontecem num dia desses, foi simplesmente porque tive a sensibilidade de percebê-las como coisas boas, frutos de minha sorte. Sendo assim, se invento uma lei sobre meus dias de sorte, seja essa lei com base científica, metafísica ou mesmo mística, sua verdade não é menos real que a lei da gravidade, ao menos para mim. Veja só, a própria lei da gravidade não foi também inventada? Mesmo que sempre tenhamos sentido uma força a nos atrair para o centro do planeta Terra, o significado que atribuímos a isso que sentimos só nos foi concebido como lei no momento em que uma primeira pessoa disse para outra, que ouviu e reproduziu para mais outra, que fez o mesmo para outra mais, por séculos e séculos, ao longo da história humana.

Ora veja, o mesmo ocorre até mesmo para o próprio significado de lei! Alguém teve que inventá-lo. Ainda que seja como nos ensina Platão, que exista uma ideia de lei viajando por aí num mundo inteligível, para que nós possamos conceber seu significado, por certo teve uma primeira pessoa que a inventou no mundo sensível, mesmo que por mimesis de uma ideia suprassensível. Se entendemos o sentido da palavra lei, é porque houve a tal da primeira pessoa a nos mostrar o sentido de sua ideia.

Não é disso que se trata, no fundo, atribuir significado às coisas que sentimos no mundo? Representar imagens com o significado do sentido que criamos das coisas que sentimos. Nesse sentido, o que diferencia a criação da representação? Não seria a arte de representar o antigo ao mesmo tempo que é a arte de criar o novo? Aquilo que pode um texto, seja uma poesia épica, um ensaio filosófico ou um manifesto político, uma crônica jornalística ou um romance best-seller, quem sabe até mesmo uma tese de doutorado, é nada mais do que o ato de brincar com as palavras, enquanto representa sentidos e cria significados. Sorte a sua que a brincadeira neste papel não envolveu contar a história de como foi descobrir quando são meus dias de azar.

Mas como disse, era um dia daqueles. Daqueles dias que o calor do inverno me inspira a brincar com as palavras.

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  1. Teresinha Almeida

    Azul da cor do mar e da noite.

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