O Educandário Ruy Barbosa
alguns dos melhores momentos da minha vida
Mesmo correndo o risco de usar um clichê, digo que, hoje, olhando pelo retrovisor da vida e do tempo, que se confundem numa só imagem, descubro que meu ingresso para começar o Curso Ginasial no Educandário Ruy Barbosa em 1957 talvez tenha sido uma das melhores coisas que pode ter acontecido na minha vida.
Observe o grifo no advérbio de dúvida.
Como saber se aquela foi realmente a melhor experiência da minha vida uma vez que outra não foi vivida?
Uma coisa é certa, ela me levou a trilhar um caminho e se a estrada não era asfaltada, também não era um lamaçal e pude caminhar por ela durante mais seis anos sem grandes solavancos.
Afinal, quem faz o caminho é o caminhante e se encontrar pedras, guarde-as para um dia construir o teu próprio castelo como nos ensinou Fernando Pessoa.
No Capítulo II, dizia eu que meu pai estava a procurar um colégio para mim e este terceiro capítulo irá tratar do assunto, suas consequências e algumas coisinhas mais.
Naquele tempo, não havia uma grande oferta de escolas públicas para o ginásio, em particular, aqui no bairro.
Creio que meu pai deve ter colocado duas condições para escolha da “minha” futura escola: – o preço e a proximidade de casa, ambas por razões óbvias.
Havia uma bem perto, o Liceu Franco Brasileiro e que ainda existe até hoje, e foi rebatizado como Colégio Franco Brasileiro.
Paira no sótão de minha memória que eu tinha vontade de estudar naquela escola, mas não sei dizer por quê.
Hoje, “adivinhando” o passado, que é sempre uma previsão que dá certo, não tenho a menor dúvida de que frequentar o Liceu Franco Brasileiro não me dariam as oportunidades de realizar tudo que consegui no Educandário Ruy Barbosa e pouco a pouco irei descrevendo minhas peripécias por lá.
O Franco Brasileiro era e continua a ser uma escola elitista onde certamente, o neto do “vidraceiro do bairro”, suposição minha pouco mais de sessenta anos depois, teria dificuldades em se enturmar lá.
Seguindo aquela linha do “abre parênteses”, aqui vai mais um antes de prosseguir.
Para quem acredita em destino, quis ele, o “destino”, que meu filho findasse por ir estudar no Colégio Franco Brasileiro, 51 anos mais tarde, por circunstâncias que não cabe aqui mencionar, sabe-se lá, talvez para que eu “realizasse um sonho” daqueles que sonhamos acordados e do qual eu ainda não teria “despertado”.
Fecha parênteses.
O prédio do Educandário Ruy Barbosa era bem grande com três andares, muitas salas e um enorme pátio no centro como eram as construções antigamente.
Felizmente o prédio foi tombado e hoje lá funciona um hostel razoavelmente luxuoso. Visitei-o a poucos anos atrás e embora muitas mudanças tenham sido feitas, a estrutura geral foi preservada.
Assim como aconteceu com a Escola Senador Correia, que também foi tombada, mais um pedaço material da minha infância e adolescência ainda sobrevive “junto comigo” aqui no bairro onde voltei a morar anos depois.
É bem provável que eu tenha tomado um susto no primeiro dia de aula ao adentrar naquela escola enorme com muitos alunos, bem diferente das outras por onde tinha passado.
Nada, porém, que fosse necessário o encaminhamento para algum atendimento psicológico, até porque esta prática ainda não estava “na moda”.
Daquele primeiro ano ficou na memória o uniforme, como se diz aqui no Rio, e alguns professores também.
Nenhum colega do primeiro ano me vem à mente por mais que me esforce.
Pensando bem, talvez de uma menina chamada Marinela, com um sobrenome italiano que não lembro mais.
Chamávamos-na “Marinela, tampa de panela”, mas como o bullying ainda não havia chegado no Brasil ela parecia não se importar com a brincadeira (será que não mesmo?). Não era bulling. Seria só uma rima inocente?
Comecemos falando pelo uniforme que em outros lugares do Brasil chamam de “farda”, talvez numa velada referência aos quartéis. Ou nem tanto.
Deixo ao leitor buscar as similitudes entre eles, os quartéis e as escolas.
Se precisar de uma ajuda na busca, Foucault pode ajudá-lo a encontrá-las.
Os uniformes ou fardas, como preferirem, podiam ser comprados em lojas especializadas.
No meu caso, minha mãe os fez porque saía mais em conta.
Provavelmente comprou uma camisa para poder “clonar” e fazer algumas extras.
A calça comprida azul marinho de um tecido chamado casimira ela mesma fez, mais de uma, sem dificuldades. Já estava acostumada a fazer roupas para nós três.
A camisa, de manga comprida, de tricoline azul rei com um bolso de cada lado. No bolso do lado direito ficava um bordado com o emblema da escola.
Neste emblema havia uma águia, talvez, quem sabe, numa referência a Ruy Barbosa, que dava o nome à escola e foi denominado o “Águia de Haia” pelo Barão do Rio Branco.
Estes bordados podiam ser adquiridos em lojas especializados e aí, era só costurar na camisa.
Compunha também a “farda”, uma gravata azul marinho.
A Era dos tênis ainda não tinha surgido, pelo menos no Brasil, então usavam-se sapatos pretos com meias da mesma cor.
O sapato mais comum, para estudantes menos aquinhoados, era um tal de “Vulcabras” e deviam estar sempre bem engraxados.
Eu gostava da vestimenta. A camisa de manga comprida com a gravata dava um toque de elegância.
Hoje, por favor, não me peça para ir a algum lugar em que se tenha que usar gravata se quiser continuar meu amigo.
Devidamente paramentado estava apto a assistir as aulas da 1ª primeira série do Curso Ginasial que eram à tarde. Começavam às 12:30 ou 13:00 e iam até às 17 horas.
Ficávamos no pátio aguardando tocar a sineta e a chamada de turma por turma para irmos nos dirigindo para nossas salas de aula, algumas no térreo e outras no 1º ou 2º andar.
Tinha o dia de cantarmos o Hino Nacional, perfilados no pátio, antes de ir para as salas. Não lembro bem, mas acho que era às segundas. Talvez para começar a semana com a “cabeça feita” no sentimento de patriotismo.
Não falei da semelhança das escolas com os quartéis?
Sentadinhos na sala de aula aguardávamos a entrada do professor ou professora e, ato contínuo, nos levantávamos em “sinal de respeito”. Só não precisávamos “bater continência”!
Professores ou professoras marcam nossas vidas por três razões. Uns se tornam inesquecíveis, por serem verdadeiros mestres, outros por serem muitos ruins. Há também aqueles que, como diz o ditado popular, não fedem e nem cheiram. Estes o nosso subconsciente nem precisa se esforçar para mantê-los esquecidos para sempre.
A grade da 1ª série era composta por nove matérias, tecnicamente chamadas de “disciplinas”.
Por que será que usam este nome?
Os dicionários registram disciplina como substantivo feminino que significa obediência às regras, aos superiores, aos regulamentos.
Deixo por conta do leitor a reflexão sobre o tema.
Enfim, matérias ou disciplinas, as nove da 1ª série eram: Português, Latim (não se surpreenda, estudei latim sim!), Francês, Matemática, Geografia Geral, História Geral, Trabalhos Manuais, Desenho e Canto Orfeônico.
Tinha também Educação Física, mas “não valia nota” portanto, nem aparecia no boletim. Ainda bem, porque eu não gostava e não gosto até hoje!
Começo pela última, o Canto Orfeônico, cuja professora não lembro nem o nome e com quem só “aprendi” a desenhar a clave de Sol, de Fá e aquelas “bolinhas pretas ou brancas com “perninha”, chamadas de notas musicais, desenhadas sobre uma tal de pauta com cinco linhas. Lembro de alguns nomes – bemol, semi-bemol, colcheia, mas não sei bem o que significam. Como sinto falta de entender isto até hoje.
Ah! Não podia faltar o dó, ré, mi, fá sol, lá, si, é claro e algumas cantarolas de hinos brasileiros.
Dentre eles, lembro de “já podeis da pátria filhos…“, que a galera do fundão resmungava, “japonês tem quatro filhos”!
Eu, geralmente, sentava-me na frente porque não enxergava bem e era mais baixinho, logo não podia participar da “antipatriótica” brincadeira. Que pena!
Daqui em diante, para não subverter a “disciplina” seguirei a ordem da lista.
Do professor de Português, Professor Mario, lembro até hoje. Sempre muito bem-vestido, com seu terno e gravata, sua letra cursiva escrita com giz no quadro negro, que eu tentava imitar.
Ele era também dentista ou estudante de odontologia, não lembro exatamente, e um fato me marcou até hoje.
Certa vez, enquanto eu caminhava para o quadro a fim de realizar alguma tarefa e ia respondendo alguma coisa, ele observou que me faltava o pré-molar superior do lado direito.
Impressionou-me a sua aguçada percepção. Anos mais tarde, a ausência deste dente foi realmente comprovada.
Ainda no estudo das línguas, “vivas e mortas”, como já mencionei, tinha o latim.
Nos quatro anos do Ginásio foi o professor Vicente.
Não posso dizer se era bom ou ruim, simplesmente “era” mais um professor.
Mas, sabe-se lá por que razão, não me esqueci dele e até acho que sua imagem até me vem à mente.
Estudavam-se as regras de gramática latina, as declinações e a conjugação dos verbos.
Creio que me ajudou ao longo da vida, o que não quer dizer que esteja a defender que se “volte ao passado” em tempos de ChatGPT e outras modernidades.
Afinal, “nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia…” como a onda no mar de Lulu Santos e Nelson Motta.
A professora Jurema nos ensinava francês e dela lembro bem até hoje. Creio que nunca a vi sorrir, mas isso pouco importa.
Também nunca perdia a calma nem colocava aluno para fora de sala.
Quando a balburdia ameaçava começar ela parava de falar, olhava para todos nós com um olhar sério que dizia tudo sem dizer nada e a “paz” voltava a reinar na sala. Simples assim!
O pouco de francês que, vez por outra, ainda me ajuda até hoje devo, basicamente, aos quatros anos de ginásio que estudei com ela.
Com a professora de francês do Científico (era assim que chamava o Ensino Médio), nem lembro mais o nome dela, chamavam-na de “Madame ….” (acho que era Elise, talvez) e só “aprendi” a cantar La Marseillaise!
Não me valeu a Medida do Bonfim, como diz a canção de Chico Buarque, nem o hino da França. Nunca fui a ver Torre Eiffel de perto.
Pensando bem, preciso dar-lhe um crédito para não ser injusto.
Na formatura do Ensino Médio do meu filho no Franco Brasileiro, cantaram os dois hinos, do Brasil e da França, como nas partidas de futebol nas Copas do Mundo. Consegui balbuciar algumas estrofes, como fazem alguns jogadores.
Allons enfants de la Patrie, Le Jour de gloire est arrivé, Contre nous, de la tyrannie, L’étendard sanglant est levé.
Valeu Madame!
As aulas de matemática, com o Professor Aurélio, um espanhol que falava português com leve sotaque de sua língua materna, eram as clássicas decorebas, mas me serviram como base talvez porque sempre tive paixão por números e raciocínio lógico.
Este talvez seja um daquelas exceções em que um professor que “não fede, nem cheira” não consegue desestimular um aluno.
No meu caso, pelo menos, para querer, mais tade, estudar matemática com profundidade.
Entretanto, o mesmo não ocorreu com a Geografia Geral que ele também “ensinava”.
Como assim, Geografia Geral e História Geral?
Esse “geral” é adjetivo ou substantivo?
Uma busca rápida pelos dicionários nos diz que se for adjetivo entende-se como “comum à maioria das pessoas ou coisas”, mas como substantivo pode ser entendido como “algo que não tem caráter particular”. Seja lá em que classe gramatical se queira enquadrar esse “geral”, ele me parece não fazer nenhum sentido quando se pretende estudar Geografia ou História.
Na Geografia Geral, o Professor Aurélio, falava de países que um garoto de 12 anos, em 1957, nem imaginava que existiam.
E o Brasil, onde vivemos, terra com proporções continentais, ficaria no “geral” ou no “particular”?
Ah! A Geografia e a História do Brasil só iríamos começar a estudar na 3ª série.
Primeiro ficaríamos sabendo que o maior rio do mundo era o Nilo que ficava lá no Egito, na terra dos faraós.
Mais tarde, iríamos descobrir que o rio Amazonas, que fica no Brasil, competia com ele na terra de que Cabral descobriu, ou melhor, encontrou por acaso em 1500!
Mas para o Professor Aurélio, tanto fazia como tanto fez.
As aulas dele de Geografia Geral ou do Brasil consistiam em ditar dez perguntas e as respectivas respostas que deveríamos decorar para repetir na prova.
Pensando bem, talvez não tenha sido tão ruim assim. Pelo menos, eu sei que a região Norte do Brasil, lá onde fica o Estado do Amazonas, dente outros, não fica no polo Norte da Terra.
Também sei que a Terra não é plana!
Na História Geral a professora era tão … que nem lembro mais o nome dela. Deixo a cargo do leitor substituir as reticências pelo termo que preferir.
Parece que ela conseguiu ser pior que o Professor Aurélio e só a cerca de vinte e poucos anos comecei a gostar de ler sobre História, não aquela “maquiada” dos livros didáticos e sim através de biografias de Getúlio a Tim Maia, passando por Che Guevara e Paulo Coelho, dentre outros (bem eclético), só para citar algumas.
Pode soar estranho “estudar” história através de biografias, mas, se paramos para pensar veremos que as “fofocas” da vida de alguém acontecem dentro de um espaço/tempo definido e aí sim entenderemos que tudo muda para ficar igual como era antes.
Tinha também Trabalhos Manuais, não lembro da professora, mas gostava das aulas pois, sempre tive habilidade manual e interesse por “construir coisas”. Já era um maker.
Finalmente para fechar as “disciplinas” ou, como dizem os estudantes, as “matérias”, falta falar do Desenho que a rigor deveria se chamar Desenho Geométrico.
Aqui o professor Sadi me ajudou muito a “traçar meu caminho pelo mundo” com régua e compasso como diz o imortal Gil.
Preciso contar uma curiosidade sobre o professor Sadi, ou melhor, duas.
Em 1972 fui morar no meu primeiro apartamento na Tijuca e lá descobri que era vizinho do meu inesquecível professor de desenho geométrico com quem aprendi a traçar retas paralelas que não se encontram no infinito, dividir a circunferência da Terra que é redonda e outras coisas mais que uso até hoje no meu dia a dia.
Por volta de 1976, mais ou menos, fui eleito para síndico do prédio e, na verdade, foi neste momento que descobri que o Professor Sadi morava lá.
Na entrada principal do prédio havia um painel enorme feito com pastilhas coloridas com um tipo de desenho que era bem comum na época e chamavam de “arte moderna”.
Pois bem, este mural tinha sido desenhado e executado pelo Professor Sadi. Ele era também professor da Escolas de Belas Artes.
Alguns anos mais tarde, eu ainda era síndico (fiquei cinco anos) fizemos uma grande reforma no prédio e alguns moradores queriam que o painel fosse destruído, porque “era antiquado”.
Bati o pé e não deixei.
Se o leitor está a pensar que o fiz por uma questão sentimental e de respeito ao meu professor, engana-se.
O fiz por uma questão de valorização da obra de um ou uma artista, seja lá quem for e em que época tenha sido feita.
Enfim, ainda não posso me despedir deste capítulo sem mencionar algumas coisas interessantes no que se refere ao meu primeiro ano no Educandário Ruy Barbosa.
Passei nas nove matérias, algumas “direto” ou por média e em outras, não lembro quais, mas certamente em latim e geografia tive que fazer algumas provinhas a mais.
Uma delas era a prova oral. Isso mesmo, prova oral.
Ficávamos cara a cara com uma banca de dois ou três professores da matéria para responder algumas perguntas de um “ponto” que era sorteado na hora.
Um estresse. A hora da verdade!
Alguns não passavam, porém ainda tinham mais uma chance – a segunda época – que hoje chamam de recuperação.
Outro fato relevante daquele final de ano foi a tentativa de conseguir uma bolsa para desconto nas mensalidades do próximo ano ou, quiçá, isenção total de pagamento.
Fiquei sabendo pelo inspetor de disciplina que haveria uma prova para estas bolsas.
E, como já havia acontecido no episódio do Amaro Cavalcante que mencionei no capítulo anterior, a prova seria no dia seguinte.
Não obtive os pontos necessários para nenhum desconto.
O inspetor, Seu Menezes, me perguntou como eu tinha ido.
Ao saber que não tinha conseguido prometeu interceder junto ao diretor e ver se conseguia “alguma coisa”. E conseguiu, não lembro se 10 ou 20% de desconto o que não era de todo ruim.
Dali em diante sempre conseguia desconto e nos três anos do Científico ganhei bolsa integral por conta de meu envolvimento espontâneo em várias atividades no colégio que abordarei em capítulos futuros.
No próximo capítulo vou contar minhas atividades de empreendedor dentro do colégio e na loja do meu avô.
E aí, o “canivete suíço” começa a ganhar “novas ferramentas” para usar pela vida a fora.
Se o leitor seguir comigo nesta jornada, que está só começando, entenderá por que eu disse no início que o Educandário Ruy Barbosa me proporcionou oportunidades que, certamente, eu não teria no Liceu Franco Brasileiro.
Grande Brites!
Que bacana esse capítulo da sua auto-biografia. Vou ler os outros. Quem sabe posso até me animar e escrever alguns capítulos da minha.
Eu bom exercício para a memória. Anime-se! Nõ deixe para amnaha o que devira ter feito ontem.